– Quiria falá cum padi Manoel!
– Posso saber o que desejaria falar com ele? - perguntei.
– Não, não. Negóci pessoar. Só cum eli, mêmo!
– E quem quer falar com ele?” Era uma segunda pergunta minha, meio fascinado com o rumo da prosa dum desconhecido que ignorava que falava com o próprio, meio aborrecido com a quase certeza de que estava sendo requisitado para meter a mão no bolso e praticar a generosidade forçada... A experiência já me tinha avisado que se deixasse o desconhecido contar a sua (sempre triste ou trágica) história, não dava para o deixar de mãos a abanar.
O trabalho pastoral e administração
Entre o trabalho pastoral e a administração Regional SVD, haverá sempre o munus assistencial que nos exercita na paciência e na caridade. E não é preciso ir para a Amazónia para se chegar a essa conclusão, graças a Deus. É de facto difícil mantermos um sorriso acolhedor no rosto quando repetidamente abrimos a nossa porta da frente e nos deparamos com alguém necessitado. Ah, tentação danada de fazer de conta que não ouvimos ou de indicar outro padre para atender mais um caso para “gente experiente!”.
Sem alguma vez ter posto de lado o trabalho pastoral, desde 1993 tenho trabalhado na administração da Região Amazónica, aumentando as minhas preocupações, quer com a linha de pastoral assumida pelos verbitas, quer com os meios para um bom desempenho das actividades que os bispos da região nos confiaram. Assim, falar em trabalho missionário na primeira pessoa, parece-me ser preciso retirar o foco da atenção sobre o povo e dirigi-lo sobre o evangelizador, muitas vezes inseguro e, não raras vezes, convencido que o seu status lhe concede privilégios legítimos e inquestionáveis.
Falar da Amazónia onde os verbitas trabalham não significa apenas evocar vastas matas, rios extensos e animais mais ou menos exóticos e perigosos, mas sobretudo constatar uma pastoral que, de preferência, abraça os excluídos, que se baseia no empenhamento laical e que é testemunhada pelo estilo de vida simples dos missionários que aí vivem. Manter essa linha missionária e fazê-lo com alegria é o objectivo de todos nós, em particular os mais antigos na missão e os apaixonados pelo Reino.
Ao completar 25 anos de presença verbita em terras amazónicas, sentimos a responsabilidade de manter firmes os ideais que para lá nos levaram. São muito atraentes e actuais as tentações dos nossos entusiasmados neo-missionários: amizades preferenciais (rendosas) com famílias da classe média; filosofia de vida muito “light”; consumismo tele-eletrónico de última geração incentivado pelos duty frees dos aeroportos internacionais e conseguido às vezes com verbas para outras finalidades; o costume de quase diariamente ocupar bastante tempo diante da televisão para assistir a programas de qualidade muito duvidosa, tipo brigas de família exibidas como diversão.
Como evitar tais situações? Como motivar nossas vidas para um serviço missionário mais generoso e abnegado? É uma tarefa difícil. Faz lembrar a luta do povo ribeirinho ao remar contra a corrente do rio Amazonas para chegar a casa. Só uma formação segura, atempada e motivadora consegue mostrar aos jovens os atalhos, as horas certas e os limites da carga na canoa para uma viagem com bom fim.
Já não é de hoje a preocupação que a nossa Congregação tem com os neo-missionários. É que nem sempre a formação recebida os prepara para a missão. E o fascínio que a Amazónia exerce sobre o imaginário dos nossos jovens, também pode não ser baseado num interesse genuíno pelo bem estar e pelos destinos dos povos da floresta... O choque também pode ser forte: clima, afectividade, cultura, religiosidade popular e mesmo a alimentação podem apresentar-se como fortes obstáculos iniciais. Além de tudo isso, vem a dificuldade do aprendizagem da língua portuguesa, para quem não é luso ou brasileiro... Felizmente, a maioria de nossos jovens missionários tem a capacidade de ultrapassar todas essas barreiras, com a ajuda dos mais “rodados” e do povo que os recebe e carinhosamente os ensina e insere na vida em comum.
A soja mata a mata
No dia 1 de Maio de 2004, Dia do Trabalhador, era o dia da ordenação sacerdotal de Frei Alex. A conjuntura levou à programação de um seminário com o tema “A soja mata a mata!” É que o altamente lucrativo plantio desse grão tem levado a grandes desmatamentos. Não dava para participar nos dois eventos ao mesmo tempo. Era preciso escolher.
O salão do colégio das irmãs Adoradoras do Sangue de Cristo, em Santarém, no Pará, estava repleto de gente vinda de todas as localidades do médio e baixo Amazonas. Entre professores universitários e gente famosa do “Greenpeace” encontrámos o “seu Pote” do Tapixaua (caboclo de bigode à Hitler que repetidas vezes nos matou a fome), fez saber como a soja está derrubando a mata no interior de Oriximiná; escutámos Dona Mundica de Fordlândia queixar-se do encerramento da escola onde os seus três filhos aprendiam a ler e a escrever, porque a comunidade não tinha mais crianças suficientes para manter uma escola funcionando, pois as famílias vizinhas venderam as suas terras para os homens da soja, que por sinal, pagam muito bem; ficámos conhecendo o desespero do “seu João da Navegantes” metido 27 quilómetros no travessão que liga a estrada de Rurópolis à comunidade Nossa Senhora dos Navegantes, essa também com menos famílias, o que levou o dono da única carreira a retirar de circulação a sua camioneta devido aos prejuízos constantes. A produção agrícola estraga-se, a reforma mensal fica pela metade quando contrata transporte particular, os doentes são levados aos ombros nas suas redes quando cometem a imprudência de adoecer ou ferir-se quando a carroça está fora da comunidade. E enquanto os catedráticos apontavam as inconveniências da monocultura, o pessoal do Greenpeace didacticamente mostrava os malefícios da soja transgénica.
Na hora da caminhada de protesto, a Sônia de Faro, rechonchuda, mas combativa, puxando a netinha pela mão, comentava indignada que tinham viajado 39 horas de barco para participarem no encontro e o povo de Santarém, que em cinco minutos se punham todos no colégio das freiras, ficava ali olhando das janelas e nem um copo de água ofereciam... E eu, morador da cidade, desculpava os santarenos repetindo as “verdades” que os políticos teimosamente nos ensinam: que a soja traz consumidores endinheirados, aumenta as receitas dos impostos municipais e gera empregos, muitos empregos... A nossa manifestação ecológica era nitidamente contra o progresso da Amazónia. Atónita, e quase levantando a neta pela mão para ficar perto do meu ouvido, gritou: “Pádi, de qui lado çê tá?”
Bastou um piscar de olhos para tranquilizar a simples e jovem avó. Mas a sua crítica inicial causou-me uma dorzinha que teimava em arreliar-me. É que os nossos padres de Santarém também não viram a necessidade de escolher participar do debate e da manifestação contra a devastação da Amazónia. Honra ao Irmão Luís Kaut que emprestou a sua enorme barriga para, com uma t-shirt XL justinha, fazer um “outdoor” ambulante denunciando o falso progresso.